quinta-feira, 30 de março de 2006

Tessitura cromática




As faces do exílio (2001)





O espanto. O acobertamento. Medo. Desterritorialização. Pasmo. Faces de exilados para terras distantes, banidos da pátria, espremidos como que gado no convés de um navio, aos quais nação alguma quer aceitar.
Ainda há que se crer no homem, como alguém que aceite um seu semelhante como aceita a si mesmo. Um sonho, pelo menos. Posted by Picasa

quarta-feira, 29 de março de 2006

Águia

Frágil!
Indefesa!

Assim a águia
ao romper o ovo
no alto ninho.

Frágil?
Indefesa?

Debicar a casca
lisa, dura,... sufocante,
no espaço aviltante.
Retorcido corpo.
Negrume!

Bica ... debica.
Romper a casca:
Proeza!
Luz!

Levanta.
Vacila.
Cai.
Levanta, por fim... o vôo.

Quem vê a águia
em pleno vôo,
pensará na águia
frágil... indefesa,
no romper do ovo?

Quê coisa!!!

Se viesse assim, como no estampido de um raio, ou num choque doloroso de um murro, tudo bem, é quase certo que nos pegaria desprevenidos, e o que viesse depois aos poucos iria se arrumando, e logo nos recomporíamos passado o susto. Mas, não, ela chega de mansinho, se insinuando da maneira mais sutil imaginável. É até difícil perceber-lhe a chegada e a presença.
Quando vem, juntos vêm os sintomas que recusamos em aceitar, ou admitir. As pessoas nos perguntam: Tudo bem? e a gente responde: Tudo bem; quando na alma sentimos que nada está bem.
As coisas perdem o sabor; dá vontade de se meter num buraco e de lá nunca mais sair; fazer qualquer coisa, dar um sorriso que seja, é tão difícil que não o fazemos. Se sorrimos, é um riso mecânico, apenas um movimento de alguns músculos da face que nada refletem de uma alegria que nos alimente a alma. Perde-se o gosto até de viver.
É um mal tão antigo. Já chegou até a ser chamado de "mal do século". Outros o chamam de melancolia, de uma tristeza sem explicação. E às vezes parece não ter explicação, mesmo. Há uma contenda química que a determinado momento eclode do orgânico, e que nos atinge até ao mais precioso bem: que é a alma. Sozinhos não se vence essa batalha.
Então, por um ato prodigioso de um Ser Supremo, Providente, vêm ao nosso encontro pessoas maravilhosas que insistem em nos dizer qua nada está bem. Então procuramos ajuda, abrimos nossa alma, e uma nova vida recomeça. Não é uma luta fácil, exige coragem, determinação, persistência. Exige que demos gritos desejosos de libertação desse mal. Que sacudamos as grades que nos queiram prender. Então, num esforço medonho, nos pomos a fazer coisas como esta, de escrever algo a respeito. Voltamos a fazer pequenas coisas que não fazíamos antes. Em qualquer sorriso que nos brote nas faces, deixamos fluir, também, um pouco da alegria que nos venha da alma. E então começamos a perceber que ainda não houve morte, e que há um vasto campo de momentos maravilhosos para ainda serem vividos.
É assim que pinto a depressão que tentou tomar conta de mim. E tenho certeza de que vou pô-la ao chão, para nunca mais dali se levantar. Juro.

terça-feira, 28 de março de 2006

Odioso!

Sim, odioso. Falo do documentário "Falcão – Meninos do tráfico", tão corajosamente produzido por MV Bill. Odioso não é o documentário em si. Odioso é o que ele nos lança na cara. Coisa já sabida há tanto tempo. É um documentário da miséria, da pobreza, e da podridão da nossa estrutura social, ávida em produzir situações miseráveis das quais temos tanto a nos envergonhar. Aqueles meninos freqüentaram uma escola que não sabemos, ou não queremos imitar, e naquela escola obtiveram sucesso. E que sucesso!
A iluminada Mestra e Doutora Bia, minha orientadora no Mestrado, soma a outras vozes, a sua, para dizer que as nossas Escolas e Colégios precisam, urgentemente, fazer de cada aula, um acontecimento. Algo tão raro de acontecer. Esses espaços devem criar acontecimentos, devem produzir algo de diferente nas crianças, adolescentes e jovens estudantes desta era de tão rápidas mudanças, para que eles amem ir às escolas. É preciso que elas voltem para suas casas falando da “adrenalina” que as seduziram, que as extasiaram nos acontecimentos escolares.
Nas noites das favelas, os “meninos do tráfico” vivenciaram acontecimentos. Ao invés de lápis e canetas, empunharam armas de todos os calibres. Como num trabalho de Arte, prepararam os “papelotes” com toda sorte de drogas. Vendendo-as, levaram para suas casas R$ 300,00 a R$ 500,00 reais. Muitas vezes mais que muitos pais e mães de família que trabalham o dia inteiro, e ganham muito menos que isso. Esses “meninos” defenderam seu território dos grupos rivais e da polícia. Aprenderam as duras leis de um estado encravado dentro de um Estado que se diz de direito. Tanto o fizeram, tantos acontecimentos vivenciaram, que vivenciaram o mais crucial e definitivo acontecimento de uma vida: a própria morte.
Dos dezessete meninos que apareceram no documentário, quando este foi ao ar, dezesseis deles já estavam mortos. O único que restou, que ironia, que gozação do destino. Seu sonho é ser: palhaço. Um palhaço daqueles que leva o riso e as gargalhadas aos espectadores dos circos. Esse garoto quer ser um palhaço, talvez como um daqueles tantos que me fez ir às gargalhadas na minha infância, e ainda hoje o fazem. Não me lembro do nome de um deles, mas lembro-me do drama que um deles viveu. Recém chegado à cidade em que eu morava, o circo anunciava o espetáculo para aquela noite. Aconteceu, porém, que a esposa do principal palhaço, naquele dia, teve o parto de um filho natimorto. Toda a trupe foi ver o “anjinho”. Eu, e outras pessoas da cidade, também lá estivemos. Lembro-me da comoção de todos. O circo teve função naquela noite? Teve sim senhor! E não sei com que coração, não sei com que força estranha essa que emana do espírito humano, mas o palhaço nos fez rir como jamais havíamos rido de um palhaço.
E nós? Palhaços: entre o valor denotativo e conotativo dessa palavra, ainda nos vemos ser feitos de palhaços pela classe política dirigente deste país, capaz de dançar à nossa frente, pela televisão, num gesto de aviltante insulto e desafio.
Que esse jovem que sonha em ser palhaço, brilhe nos picadeiros verdadeiros do mundo real do circo, pois o que temos no dia a dia da política praticada no nosso país, é coisa de novela grotesca escrita por algum maluco qualquer, que nos quer a todos fazer de palhaços.

quinta-feira, 23 de março de 2006

Tessitura cromática

Alegorias de Angola II(2002)


Rostidades!
Um continente de etnias.
O olhar em busca do horizonte distante no qual se descortine a liberdade e o direito à existência.
Homem e natureza, juntos, com a altivez própria do direito ao devir maravilhoso de possuir a terra, sem a mácula das mãos brancas ávidas de riquezas.
Esfacelamentos - não sem dor, lágrimas e sangue - de impérios colonialistas. Posted by Picasa

Andarilho

Estradas e caminhos.
Lento caminhar.
Destino incerto.

Ossos corroídos.
Alma dolorida.
Fuga de si mesmo.

Por onde caminhar?
Para onde fugir?

Passos e caminhos:
Perene encontro, com
A fuga impossível.

Move o corpo.
Move a alma.
Move o pensamento.
Junto, o sofrimento!

Caminhos!... fuga!
Como fugir:
Se a alma caminha,
Se o corpo caminha,
Se o pensamento caminha,
E o sofrimento acompanha?

Ah! Se pudesses fugir,
Nessa fuga impossível.
Assim... como... morrer enfim.

Morrerias tu,
Antes de caminhar,
teu caminho impossível,
Lento Andarilho?

quinta-feira, 9 de março de 2006

Gotas Mortas

A chuva cai
Lenta... e calma.

De esmeraldas
Que a brisa embala,
Gotejam límpidos...
Cristais.

Só a alma,
Em dor e nostalgia
Tamanhas,
Lágrimas retém... e dói.

A chuva cai
Lenta e calma.

Só a alma
Em teimosa agonia
Abafa nas entranhas
Lágrimas que não vêm... e dói.

E a chuva
Ainda cai
Lenta e calma
Bailando cristais.

Depois... se vai.
E a alma... Ai!

domingo, 5 de março de 2006

Tessitura cromática

Alegorias de Angola I (2002)


Do efacelamento de um império, um povo que, pelo devir virtual dos úteros de suas mulheres, busca, nos horizontes da África, por um mundo de liberdade e paz. Homem e natureza, juntos.
O que será de ti, Angola? Posted by Picasa

sexta-feira, 3 de março de 2006

Silêncio na Floresta

Crepitando a lenha no fogão. Lentas labaredas aquecem o aposento, misto cozinha, sala e lugar de freqüentes reuniões. Acima do fogão, toucinhos, lingüiças e carnes defumam, sem pressa de estarem prontas.
Num lugar elevado e próximo a uma das paredes, uma lamparina ilumina o ambiente na madrugada cheia. A tênue luz destaca uma velha moldura que realça uma frase em letras góticas, reluzentes de purpurina: "O pão não faltará a esta casa."
No ar, um forte aroma de café.
O silêncio, profundo, é interrompido pelo chiar de uma gota de gordura, caída na chapa quente do fogão.
- Você precisa se cuidar. - Diz ela em tom preocupado.
Seus corpos, estendidos na rede trazida do quarto, não precisam do calor do fogão. Amam-se. Aquecem-se. Respiram um ao outro. Ele, abraça-a suavemente e, jurado de morte, diz-lhe:
- O que tiver que ser, será! Nenhum cuidado vai evitar.
Sente o tremor do corpo amado, que mais se aconchega ao seu, como que a querer protegê-lo. Ficam mais alguns instantes gozando suas presenças na serena madrugada.
- Tenho que ir. Eles querem me ouvir antes de adentrarem as estradas. - Ele diz.
- Te cuida.
- Tá! O Narciso vai me acompanhar no eito.
Levanta-se e beija-a. Acende a poronga que lhe iluminará os caminhos; apanha os demais petrechos.
Ao sair para a madrugada ainda escura, línguas de fogo cospem duas balas traiçoeiras que lhe barram o caminho rumo aos seringais.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Apagão nas cacholas

Entrei no mercado da minha cidade. Por algum motivo havia faltado energia.
A moça por trás do balcão me disse:
- Pão eu posso vender. Não precisa pesar!
E conversamos amenidades sobre a vida moderna elétrica, eletrificada, eletrizante.
No caixa, a moça usou uma calculadora pequena. Dia de promoção: R$ 0,07 a unidade, vezes quinze. Não soube dizer quanto deveria cobrar.
Perguntou para as outras: - Como é que eu faço?
- Multiplica R$ 0,12 pela quantidade.
- Mas hoje é promoção. É sete.
Uma outra, já calculada, emendou:
- Cobra um e dez.
Saí no prejuízo de cinco, e pensando em como é difícil, hoje, viver sem energia elétrica, mesmo aqui, numa cidade pequena do interior.