sábado, 11 de fevereiro de 2006

Menino de rua

Rápidos e fortes clarões iluminavam as silhuetas altas e frias dos edifícios. Seguidos trovões reboavam, encobrindo qualquer outro ruído da grande cidade. Prólogo de chuva torrencial.
Encolhido num canto, seu corpo pequeno tremia. Um pouco por causa do frio, e mais de medo, de desencanto com a vida, de desamor. Fechou os olhos, tapou os ouvidos e se encolheu um pouco mais.
Os clarões e os trovões pareciam agora acontecer dentro do seu pequeno ser. Quis chorar. E então chorou junto com a chuva que começava a cair. Lembrou do pouco tempo até agora vivido e de tantas coisas já passadas. Lembrou que um dia teve um lar, apenas não sabia onde.
Lembrou de brandas luzes, bichinhos coloridos, sorrisos e afagos. Um rosto lindo de mulher, uma voz que o embalava. Um berço macio. Odores deliciosos. Um perfume suave e delicado.
Não aprendera ainda o que era esperança, mas sonhava um dia ter alguém que lhe adotasse de verdade, que o resgatasse da rua e lhe chamasse de filho.
Pensava muito nessas coisas. Pensava nelas agora.
Vagamente lembrou que um dia, mal sabendo andar, num lugar de muitas luzes e muita gente, mãos estranhas, duras e apressadas, o carregaram. Esteve em lugares escuros e mal cheirosos. Conheceu e padeceu o frio, a fome. Ouvia palavras rudes e recebia beliscões.
Mais crescido, foi mandado para a rua pedir esmolas e comida. Apanhava muito quando as mãos voltavam quase vazias. As coisas estavam difíceis. As pessoas já não estavam dispostas a dar dinheiro.
Há alguns dias, tinha levado pouco dinheiro e apanhara muito. Disseram-lhe que se não lhe dessem dinheiro, que então o roubasse, ou qualquer outra coisa, mas não voltasse mais com as mãos vazias. Não quis ser ladrão. Fugiu. Andou por lugares estranhos e só pedia comida. Agora estava com fome. Não estava gostando de viver, e chorava muito.
Estava assim, pensando na vida pequema e sofrida, encolhido no seu canto, quando sentiu um agasalho quente cobrir-lhe o corpo. Mãos macias afagaram os seus cabelos sujos e molhados. Por entre as lágrimas, viu as delicadas mãos colocarem entre os seus pés descalços, um pacote de doces e biscoitos. A chuva estava parando. Tudo estava muito escuro.
Uma voz meiga lhe disse, com um afago: - Fique com Deus. Alguém se afastou, entrando logo num carro muito bonito.
O pequeno percebeu então o perfume suave e delicado. Cheirou e voltou a cheirar o agasalho e o ar à sua volta e percebeu que não estava sonhando. O perfume era aquele mesmo, o da sua lembrança.
De um salto levantou-se. Como que ensandecido, correu atrás do carro que se afastava devagar.
O mais que pode gritou:
- Mamãe! Mamãe!
O carro parou. A porta se abriu. Já não chovia mais.

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