quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Chronos, devorador de vidas e de sonhos - 10


 

(parte 10)

Viu, ao piano, uma bela e jovem mulher. Era ela, com seu transparente talento, quem arrebatava a todos. Sua música fluía suave, envolvente. Suas mãos percorriam o teclado como se roçassem em delicadas pétalas de flores; e o instrumento respondia de uma forma incomum. O ambiente recendia a algo quase místico, tal o frescor e profundidade da sua música.
Terminados os últimos acordes, o salão parecia mergulhado num denso e paradisíaco silêncio; eram as últimas notas que ainda ressoavam nas almas. De súbito, todos pareceram acordar de um sono embalado por belos sonhos; explodiram os aplausos, os gritos contagiantes de: Bravo! Bravo!; e pediam Bis!... Bis!... A jovem mulher, com gestos suaves, agradecia. Tão calorosos foram os aplausos, que o organizador do sarau a reconduziu ao piano. Feito o silêncio, ela fechou os olhos, dessa vez. E a música ressurgiu ainda mais bela; agora era apenas sua alma que, tomando por empréstimo todo o corpo e seus sentidos, executava a música que evoluiu como que endereçada aos deuses. Terminada a música, novamente explodiram os aplausos.
Havia outros músicos para se apresentarem. O organizador do sarau procurava conter o justo entusiasmo dos presentes; inclusive a unanimidade dos demais músicos, que reconheciam estar diante de uma virtuose, e aplaudiam acaloradamente. Sob protestos, o pobre do organizador praticamente forçou a ida dos próximos músicos para diante da platéia. Era um renomado trio de cordas que fazia parte de uma orquestra que se apresentaria na cidade nos próximos dias. Estes, pacientemente, aguardavam que os mais entusiasmados finalizassem os cumprimentos à jovem, pois a haviam cercado, envolvendo-a com elogios.
Ele estivera o tempo todo à porta. Aplaudira da primeira vez, e redobrara o entusiasmo dos aplausos na segunda vez, encantado com o talento e beleza da jovem. Era um adorador da boa música. Enquanto a jovem pianista ainda era envolvida pelos mais entusiasmados homens e mulheres, ele recolheu uma flor de um vaso próximo, e dirigiu-se ao piano, do qual postou-se ao lado. Sua intenção era fazer um mimo anônimo. O destino, porém, não queria assim. No exato momento em que fazia o gesto para depositar a solitária flor sobre o piano, seu olhos se cruzaram com o olhar da mulher que, de relance, passara por onde ele estava. Ela, ao perceber tão delicado gesto, fixou nele o olhar; recolheu o sorriso que retribuía os cumprimentos dos circundantes e, depois de um breve instante balbuciou um agradecimento. Ele ergueu a flor em sua direção numa delicada oferta, e a depositou sobre o piano. Novamente ela agradeceu, enviando-lhe um sorriso suave.
Esse breve momento favoreceu para que os insistentes circundantes fossem convencidos por outros a se dirigirem aos seus lugares. A jovem foi acompanhada ao seu lugar. Ele retirou-se.
O fato dele ter entrado no salão; talvez para o ar carregado emanado dos corpos em euforia, trouxe-lhe algum desconforto para os pulmões. Pensou em parar novamente à porta e ouvir o trio que se apresentaria e, quem sabe, num momento oportuno, cumprimentar à talentosa e bela pianista. Mas o ar quente, viciado, vinha até ele, provocando-lhe incômodos. Aproveitou um breve encontro de olhar com um dos amigos; o fez compreender por gestos discretos o que estava sentindo, e despediu-se, agradecendo e dispensando qualquer companhia. Saiu para a rua.
O cocheiro prontificou-se a levá-lo para casa. Recusou, dizendo que preferia fazer uma caminhada, que teria a noite toda para fazer isso. Caminhou a esmo, passou por antigos lugares que freqüentava. Passou por um pequeno e acolhedor cabaré, um dos seus antigos preferidos. Entrou; cumprimentou velhos conhecidos; trocou algumas palavras aqui ou ali; recusou alguns convites para assentar-se às mesas. Sentia uma estranha, mas suave inquietude. Acenou para alguns, e ganhou a rua e o caminho para casa.


2 comentários:

Serenidade disse...

Amor á primeira vista???

Um doce beijo sereno

efvilha disse...

Serenidade.

Tens razão. Pelo andar do texto, é isso mesmo. Um amor que surge com a força de um "big bang", capaz de criar beleza e martírio.
Reconto uma das muitas belas histórias que li. Esta, ainda na infância, lida e relida numa fotonovela. Breve virá a próxima parte.

Teu beijo doce e sereno é acolhido na alma, por ser esse um beijo diferente daqueles fugazes num breve roçar de faces e atirados ao vento. Ainda mais quando acompanhados de um fatídico e sonoro "mmmmmmuaaahhhh!", gélido na reticências.

Outro dos doces e serenos beijos para você.