quarta-feira, 31 de maio de 2006

Encontros virtuais




Foi há muito tempo. Eu era mais que apenas um menino. Amava.
A cidade na qual morava, no interior do Estado de São Paulo, tinha como Santo Padroeiro, São João Batista, portanto, época das tradicionais festas juninas pelo Brasil afora. Tradição antiga na cidade, o dia 24 de junho era feriado, dia de grandes comemorações, de reunião de famílias. Havia quermesse. Exatamente quinze dias antes, começavam as festividades que se encerravam no dia do Santo. Por essa ocasião, sempre se instalava um Parque de Diversões na cidade, eventualmente, um circo ali também se instalava.
Todos os dias havia rezas que começavam às dezoito horas e trinta minutos. Rezava-se o terço, ladainhas, e cânticos de louvor ao Santo Padroeiro. Depois, aconteciam os festejos. O ponto principal era o enorme pavilhão que existia ao lado da igreja. Se você ficasse de frente para a igreja, o pavilhão ficaria à tua esquerda. Era no formato retangular. Do lado do sol poente, posicionado no meio da parte de maior extensão, havia um anexo com o piso um pouco mais elevado. Ali havia uma grande mesa, diariamente ricamente ornamentada, onde eram colocadas as prendas para serem leiloadas. Havia de tudo. Leitões, frangos, perus, pernis e quartos de cabrito caprichosamente assados e ornamentados; bolos confeitados com esmero; cestos repletos de doces e variedades de biscoitos; utensílios de cozinha; vasos e outras peças em vidro ou porcelana; cortes de tecidos; imagens de santos, enfim, uma profusão de coisas que eram rapidamente arrematadas. Dependendo das intenções dos doadores havia pessoas que o faziam em cada dia da quinzena, outros o faziam em novenas, outros por três dias; tudo dependendo do cumprimento de promessas e agradecimentos por graças alcançadas, ou esperadas. Tudo isso era anunciado pelo leiloeiro.
Terminado o leilão, alguns homens afastavam a mesa para os fundos desse anexo, e ali se instalavam sanfoneiros, tocadores de violas e violões, de pandeiros e, com músicas e cantorias, faziam o entretenimento das pessoas. Do lado oposto, outro anexo servia para o resfriamento e fornecimento de bebidas, tendo ao lado uma cozinha onde eram preparados pastéis variados, entre outros quitutes. A festa não tinha hora para acabar. A praça em torno da igreja era tomada pelos jovens e crianças que ali se divertiam.
Uma outra tradição antiga era o “footing”. Durante o restante do ano, todos os sábados e domingos, os rapazes e as moças se reuniam num espaço da avenida principal da cidade. Ao longo dessa avenida havia a sarjeta e o calçamento em frente dos estabelecimentos comerciais e das residências, mas o leito era de chão batido. No meio da avenida havia uma fileira de postes, espaçados, cujas luzes a iluminavam. Isso, até às vinte e duas horas e trinta minutos, pois, a energia era fornecida por um gerador movido por motor cujo combustível era o óleo diesel, e era religiosamente desligado a essa hora..
Logo que escurecia, iam chegando os rapazes e as moças. Aqueles se postavam a sós ou em grupos, nas calçadas ou no espaço entre os postes de iluminação. As moças, no mínimo em duplas, iam e vinham usando os dois lados da avenida. O “footing” acontecia ao longo de um quarteirão que ia da esquina onde havia a única sorveteria até o armazém do senhor Jeremias, na outra esquina. Era nesse espaço que aconteciam as trocas de olhares, sorrisos, flertes, encontros que, na maioria das vezes acabavam em namoro, noivado e casamento.
Um determinado lugar era ocupado pelas ainda meninas onde faziam as rodas de cirandas, rodas da passagem do anel ou do lenço, pulavam cordas, e se divertiam. Já os meninos, sempre suarentos e esbaforidos, ocupavam um lugar próximo da sorveteria para fazerem a adorada brincadeira do “salva-pega”. Alguns pais, vigilantes, sentados em cadeiras ao longo das calçadas, faziam rodas de prosas.
Toda essa rotina se modificava pela época da quermesse. O “footing” acontecia na rua da praça, em frente da igreja. Esta tinha um gerador próprio de energia que a servia, e ao pavilhão e arredores. Nesses quinze dias, o outro gerador que alimentava a cidade com energia, funcionava até à meia noite. Na praça, também, o espaço era bem divido entre os meninos e as meninas. Estas, com as suas eternas brincadeiras. Já os meninos se dividiam. Enquanto uns se divertiam com a brincadeira do “salva-pega”, outros formavam dois grupos num dos lados da praça e faziam “guerra” com traques, bombas, principalmente as “busca-pé”. O maior temor dos pais eram as “batalhas” feitas com pequenos rojões. Estes tinham uma pequena haste de madeira. Numa das pontas havia o dispositivo com pólvora para impulsioná-los, e o explosivo. Cada grupo se colocava a uma distância segura, portanto, os acidentes eram raríssimos. O perigo era quando um dos meninos de um dos grupos, mais atrevido e afoito, cortava a vareta de madeira e acendia o rojão. Nestas condições, era um perigo, pois não havia controle algum sobre qual direção tomava, e fazia loucos rodopios até estourar. E assim se passavam os dias e as noites até o grande dia, o dia do Santo.
Todos os anos, exatamente às seis horas da manhã havia uma salva de vinte e quatro explosões. Era feita uma encomenda especial, e se tratava de um cordão estopim que, a intervalos regulares continha uma bomba de grande potência. Ninguém resistia ficar mais próximo que cinqüenta metros do artefato. Mesmo em maior distância, percebia-se o efeito do deslocamento do ar. Muitos acordavam cedo para presenciarem essa queima de fogos. Assim que acabavam as explosões, repicava o sino da igreja, e a cidade já estava pronta para o grande dia. Nesse ano, o dia 24 caía numa terça-feira.
Durante toda a manhã, a praça era tomada por muita gente, pois, eram feitas várias brincadeiras e competições para as crianças e quem mais quisesse participar. Havia cabos de guerra; corridas em sacos; corridas com uma colher na boca tendo na concha um ovo; quebra de moringas repletas de balas, com os olhos vendados e acionando a esmo um bastão. Enfim, eram inumeráveis os entretenimentos até próximo da hora do almoço.
Cada família preparava o melhor para esse dia. Muitas, feitas encomendas antes, se serviam de um almoço que era feito no pavilhão da quermesse, onde era servido churrasco assado em uma valeta enorme e profunda, repleta de braseiro. Os grandes pedaços de carne eram colocados em longas varas especialmente preparadas. A carne assada era servida com outras várias iguarias.
Por volta das quinze horas, acontecia o leilão principal. Num lugar não muito retirado da cidade havia um curral onde eram reunidos os animais vivos, principalmente novilhos, novilhas e cavalos, tratados com esmero e doados por fazendeiros e sitiantes. Tudo era arrematado. Nesse ano, o valor que resultasse da quermesse seria aplicado no forro da igreja.
Às dezenove horas acontecia a missa, solene. A igreja e arredores repletos de gente. Como a missa ainda era celebrada em latim, o padre Diderico, com o seu sotaque europeu, fazia várias leituras e preces em cântico gregoriano. Claro, era um dia muito especial. Logo depois, havia a queima da fogueira. Nesse ano ela era imensa, e todo o povo, a uma distância segura, a vira arder. Quando a fogueira já era um monte de brasas e cinzas, alguns rapazes se aventuravam a “pular a fogueira”, como diziam. A verdadeira quermesse acontecia, o pavilhão e a praça abarrotados de gente.
Nesse dia, eu estive e participei de algumas brincadeiras. Havia estado no leilão da tarde, mas, com a chegada da noite, inexplicavelmente foi-me invadindo uma melancolia profunda. Em razão disso, eu me mantinha só, evitando as pessoas, os amigos. Nenhum lugar parecia atrativo para mim, e caminhava a esmo, sem entender o que estava acontecendo.
Num determinado momento, o mundo pareceu desaparecer debaixo dos meus pés, o coração acelerou, e minhas faces pareciam arder em fogo, um ligeiro tremor tomou conta de mim. Hortênsia! Não era sonho ou ilusão. Ela estava ali, a alguns passos apenas, alegremente conversando com um grupo de amigas. Ela não me viu. Como pude, procurei dominar a forte emoção, e me afastei indo para o lado direito da igreja, lugar pouco freqüentado. A surpresa fora grande demais. Pelo que eu sabia, Hortênsia deveria estar no colégio, numa cidade não muito próxima, no qual era normalista interna.
Ao dobrar o ângulo direito da igreja, deparei-me com outra visão, de tirar o fôlego. Era noite de lua cheia. O céu estava límpido, não soprava a mínima aragem, e a temperatura era amena, deliciosa. A lua, enorme devido ao fenômeno de estar próxima do horizonte, se insinuava um pouco acima das casas e árvores. Mas, aos poucos, parecia que ia se despindo, elevando-se lentamente, exibindo-se. Enquanto a olhava erguer-se majestosa na noite, havia na minha mente um turbilhão de pensamentos.
Primeiro achei-me tolo. Por que não fui adiante até que Hortênsia me percebesse? Por que somente agora eu a vira e não em todo o final de semana, se ela ali estava? Entre todos esses e outros pensamentos, permanecia a sua presença, ligeiramente captada pelo meu olhar, e a minha fuga inexplicável. Tudo isso eu fazia, de olhos fixos na lua que, insinuante,
despia-se diante de mim.
Ela agora se mostrava por inteiro, já bem acima das casas e das árvores, quando percebi uma presença ao meu lado. Um delicado e suave perfume se espalhou pelo espaço ao redor, perfume esse que eu reconhecia. Olhei para o lado, e ali estava Hortênsia, junto de mim, e olhava para a lua. Seus cabelos, de um loiro escuro, tinham, naturalmente, algumas mechas mais claras. Estas, pelo arranjo que ela fizera no penteado, destacavam-se sob o clarão da lua. Também seus olhos, verdes, meigos, brilhavam como que hipnotizados pelo luar. Nas faces, uma bela expressão de quase êxtase. Enquanto ela admirava a lua, eu não conseguia desviar os olhos dessa mulher tão amada. Ela era mais bela que qualquer luar.
Passado algum momento, ainda olhando para a lua, ela disse:
- Linda! Não é?
Sufocado pela emoção, mal pude balbuciar algo em resposta afirmativa.
Ela, novamente, rompeu o silêncio e disse:
- Você sabia que ela é um lugar de encontros?
Hortênsia sabia de mais coisas que eu. Olhei para a lua e, num esforço enorme, respondi-lhe com uma pergunta, a única palavra que me veio à mente.
- Verdade? – eu disse.
Hortênsia segurou minha mão e entrelaçou os seus dedos aos meus. Nesse gesto, mesmo com a pressão que ela fazia, havia uma suavidade indescritível, o que me abalou por inteiro. Passados breves momentos, ela disse:
- Os enamorados, quando sabem que irão ficar distantes por muito tempo, costumam marcar um ou mais dias, e determinada hora. Então, combinam olharem para um ponto qualquer na lua, e se imaginarem assim, juntos. Então... deixam seus corações, suas mentes, dizerem tudo o que diriam se estivessem juntos.
- Verdade? – tolamente repeti.
Ela pressionou um pouco mais sua mão. A esta altura, minha mão experimentava um calor delicioso, transpirava, trêmula de emoção. E Hortênsia completou:
- Ouvi dizer que, quando há muito amor, um e outro coração pode ouvir o que o outro diz, mesmo que seja de bem longe. – após breve pausa, acrescentou:
- Eu acho lindo isso.
A esta altura, som algum sairia da minha garganta. Eu apenas gozava esse instante de paraíso, e parecia flutuar, num arrebatamento jamais vivido por mim.
Instantes depois, ouvimos que alguém a chamava. Eram duas das suas amigas. Disseram-lhe que seus pais a procuravam, pois queriam ir para casa. Hortênsia agradeceu-lhes o aviso, e disse que iria logo.
Então, colocando-se diante de mim, tomou-me a outra mão, e disse:
- Jamais vou esquecer você. Toda vez que eu ver a lua, não importa que seja uma mancha esbranquiçada num céu azul, vou pensar em você.
Apertou-me as mãos ainda mais e disse:
- Adeus.
Ficamos ali parados por uns instantes, olhando-nos. Eu já não a via com clareza, pois lágrimas afloraram aos meus olhos, turvando-os, mesmo que eu resistisse. Depois, suavemente ela largou minhas mãos e se afastou. Antes que eu a visse desaparecer por trás da igreja, percebi que ela, com as mãos, enxugava lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
Ainda aturdido, fiquei ali mais alguns instantes. Nada mais me importava naquela noite, e fui para casa. Deitado, não conciliava o sono, e pensava e repensava cada momento vivido. Inquieto, rolava na cama, por horas, até que percebi por uma pequena fresta da janela do quarto, um fio de claridade. Abri a janela e vi a lua que já declinava cedendo lugar ao sol que não tardaria em aparecer. Havia, agora, uma fresca aragem. Aos poucos foi-me tomando uma espécie de torpor. Voltei para a cama e acabei adormecendo. Não me lembro de ter sonhado algo. Nenhum sonho, por mais belo que fosse, jamais se igualaria os momentos reais vividos por mim naquela noite.
Dias depois eu soube por uma amiga de Hortênsia, de que houvera, no sábado, o casamento de uma parenta que morava distante. A muito custo, seus pais haviam convencido a diretora do colégio internato que permitisse a sua ausência para ir ao casamento e passar o feriado com a família. Haviam chegado à casa tarde da noite da segunda-feira, pois que alguns festejos de casamentos naquela época, costumavam durar até três dias. O compromisso era que Hortênsia deveria estar no colégio no máximo até a hora do almoço, para não perder, também, as aulas da quarta-feira à tarde. E assim foi feito.
Essa mesma amiga deu-me outra notícia que abalou-me profundamente. Nas próximas férias, em meados de julho, Hortênsia não viria para casa. Seus pais, apesar da época do ano, combinaram com alguns familiares passarem todas as férias no litoral. Na ida, pegariam Hortênsia no colégio e, na volta, lá ela ficaria sem vir ter à casa.
E assim foi que, primeiro a distância, depois o tempo, nos afastaram para sempre. Em meados do segundo semestre, por questão de trabalho, minha família mudou-se para uma cidade maior, relativamente distante. Antes de completar um ano em que ali moramos, também por questão de trabalho, minha família resolveu mudar-se para Santo André, no ABC paulista.
Ali amadureci um pouco, já trabalhava. Haviam se passado quatro anos desde a primeira mudança. Nas primeiras férias que consegui, planejei e fiz uma viagem à cidade que me vira crescer até a adolescência. Meu coração ia esperançoso por reencontrar Hortênsia. Ele, porém, encontrou apenas a desilusão. Um ano depois de eu ter-me mudado dali, o pai de Hortênsia vendera a fazenda onde cultivava café, e comprou outra fazenda em um lugar distante, e tornou-se pecuarista. Lá agora viviam. Hortênsia, pelo que uma das suas antigas amigas sabia, estaria noiva e se casaria no próximo ano.
Então, naquele nosso encontro na noite de quermesse, aconteceu o nosso primeiro, único e derradeiro contato físico.
Existe, na lua, eleito por mim, um lugar que é só nosso. Na lua cheia, quando as nuvens o permitem, eu para lá olho, relembro nossas mãos entrelaçadas, e confesso à Hortênsia que não a esqueci, que ela foi o meu primeiro e tão delicioso amor.
Passaram-se os anos. Hoje, se me olho no espelho, percebo o que o tempo fez comigo. E me recuso a convencer-me que o mesmo tenha acontecido com Hortênsia. Para mim ela é aquela bela e meiga jovem que, por algum tempo, aqueceu-me o coração com o seu, e demonstrou compartilhar o amor comigo. É essa Hortênsia, meiga, jovem e bela, que eu levarei comigo para a eternidade. Posted by Picasa

4 comentários:

Alicia Moreno disse...

Muchas gracias por tu comentario :-)

Moito obrigado!

Paula Zilá disse...

Lindo! Belíssimo texto!!! Que prosa poética vc tem! Me lembra García Márquez.
Obrigada pelo que escreveu no blog, apaguei aquele texto, pois já mudei de humor.rs Mas oq escreveu está guardado! Continue contribuindo com tão adoráveis palavras! Beijos, Paula

fritzthegermandog disse...

caro amigo:

antes de mais, agradeço ter passado pelo feirafranca e de aí ter deixado o seu comentário! espero que não sido a última visita ao blog feirafranca e que alim encontre razões para deixar mais comentários.
Como a curiosidade foi de igual maneira grande não deixei de prestar uma visita ao seu sonetosesoatas e constatar que usa a nossa língua comum, o português, de uma forma altamente recomendável e que por esse mesmo facto certamente voltarei mais vezes.
Como já foi objecto de sua reflexão, hoje os oceanos não são mais fronteiras....

feirafranca.blogspot.com

Seu Menezes disse...

gracias por tuas palavras no meu blogue "Os Pátios". Só agora vi teu comentário sobre o poema de Deus e os poetas, aquele. Abraço, desde Caxias do Sul!