domingo, 9 de julho de 2006

Chronos, devorador de vidas e de sonhos - 5

(Parte 5)


O almoço foi longo e prazeroso. Além da comida farta, havia o clima de alegria. Esta, a causa primeira da duração e do prazer. Para o almoço, cada família se esmerara na preparação das carnes: havia leitão assado; frangos; quartos de cabrito; carnes de panela, tenras, macias, e uma profusão de acompanhamentos. Delicioso. Leonor sentara-se ao meu lado, indicava-me o melhor a ser servido, sorria, ria, e tudo nessa pequena me causava encanto. Eu teria passado o dia ao seu lado, sem preocupar-me com o que comer. Terminado o almoço, as moças se prontificaram a tudo arrumar. Minha irmã entre elas.
Para seu entretenimento, haviam construído duas canchas: uma para o jogo de malhas, e outro para bocha, lado a lado. Esta foi tomada pelos adultos. Nós, os menores, jogamos malhas. Qualquer coisa era razão para divertimento. Claro, eu e Leonor, à escolha dela, fizemos três partidas, e ganhamos duas. Não se sabia de onde vinha tanta alegria, em coisas tão simples. Talvez resultado do gozo simples da vida.
Num dado instante, novamente Leonor tomou-me uma das mãos e me arrastou consigo. Queria mostrar-me um lugar que, dizia, era só seu. Encaminhamo-nos para o pomar e paramos diante de uma frondosa mangueira. Não foi difícil escalá-la. Havia, num ponto de um dos seus grossos galhos, um arranjo que parecia ter sido feito por encomenda. Naturalmente surgira uma junção que permitia sentar-se com segurança e conforto, tendo como encosto dois outros galhos. Esse, disse Leonor, era o seu lugar predileto, achara-o por acaso. Quando queria ficar só, quando queria pensar, era para ali que ela vinha. Às vezes, dizia, era ali acomodada que fazia os deveres escolares, e lia com melhor prazer. Ela me fez acomodar-me no seu lugar predileto, e posicionou-se numa junção em forquilha, bem à frente. Insisti para trocar de lugar. Ela recusou veemente, e disse que estava adorando ver-me ali, desfrutando do seu lugar preferido.
Conversamos sobre muitas coisas. Dos estudos, sabíamos algumas histórias retiradas dos livros comuns de estudo. Delas nos lembrávamos, e as recontávamos reinventando-as. Falamos das nossas ainda pequenas vidas, mas tantas coisas já vividas. Tudo muito divertido para apenas duas crianças que ainda éramos. Passamos horas agradáveis ali. Apesar de ter notado que Leonor não estava tão bem acomodada quanto eu, em nenhum momento aceitou a troca. Dizia que achava bom eu ali estar, e que na próxima vez que ali se sentasse, podia melhor ter lá suas recordações. Tão meiga e gentil essa pequena.
O entardecer veio logo. O jantar foi servido, e as brincadeiras continuaram.
Os adultos se ocuparam das suas conversas. Os menores, cada qual obedecendo aos reclamos das suas idades, faziam o que lhes apeteciam, tudo iluminado pela clara luz de lampiões a querosene.
Num dado instante Leonor afastou-se e retornou com duas mantas. Pediu-me que a acompanhasse. Afastamo-nos um pouco da claridade dos lampiões, e Leonor estendeu uma das mantas sobre um relvado macio. Ali nos deitamos. Com a outra manta, cobriu-nos; para proteger-nos do sereno, dizia. Assim, deitados lado a lado, tendo apenas a cabeça e os braços livres, podíamos contemplar a noite límpida, e a profusão indescritível das estrelas. Primeiro houve algum tempo de silêncio. Ficamos olhando as estrelas e ouvindo a vida absorver nossos queridos familiares, distantes poucos metros. Era reconfortante estar ali. Depois começamos a falar, cada qual da sua admiração por algo tão profundo como uma noite dessas, e dos mistérios que julgávamos estarem escondidos naquela profusão de estrelas à nossa frente. A lua não aparecera. Já a havíamos visto durante o dia como uma pálida mancha esbranquiçada e incrustada no também límpido azul do céu.
Apesar da delícia desse convívio, o sono chegava insinuante, convidativo para uma noite repousante.
Estava reservado para a minha família um lugar acomodado numa das casas, para que não ficássemos separados. Mas Leonor tanto insistiu para que eu dormisse na sua casa, que os adultos cederam. Um dos seus irmãos fez a troca comigo. O sono veio profundo, relaxante.
Acordei com as conversas alegres, e com o delicioso aroma do café recém preparado se espalhando pelo ar. Também nesse momento, cada qual trazendo coisas das suas casas, o café da manhã foi tomado numa reunião não menos descontraída. Ali ficamos sabendo que o almoço seria antecipado, pois meu pai queria iniciar a volta para casa o mais cedo possível. Posted by Picasa

2 comentários:

Mia Alari disse...

Fiz uma viagem muito boa pelo seu mundo com esse texto lindamente escrito, cheio de sensações e gostos.
Um abraço
Maça

Zana disse...

Deliciosamente alucinante,
Adoradamente confortante,
Amorosamente carinhoso...

Ler esse texto, foi como receber um carinho, um afecto... um conforto...

Obrigada!