domingo, 20 de agosto de 2006

Chronos, devorador de vidas e de sonhos - 9


 

(parte 9)

A aventura desta manhã acontecia pela leitura. Entre as revistas havia umas edições recentes de O cruzeiro. As demais eram revistas especializadas em fotonovelas. Folheamos algumas O Cruzeiro. Havia um mundo feito por pessoas, acontecimentos, que tardavam a chegar até onde morávamos, não pelo rádio, mas daquela forma trazida pelas revistas; pelo rádio não nos chegavam fotos das pessoas, dos lugares, das coisas; aquele – o mundo das revistas – era um mundo que nos levava a outros mundos, encantadores. Pelo rádio, tudo isso ficava por conta na nossa imaginação, sem que ela fosse alimentada por tão belas imagens. Pelo rádio não era a mesma coisa. As revistas, e o que delas saltava, instigante, nos enchia os olhos e aguçava ainda mais a nossa curiosidade.
Depois, Leonor pegou uma das revistas de fotonovelas, e disse que uma das suas primas havia começado a sua leitura. Dissera que se tratava de uma bela história de amor. Leonor propôs que a lêssemos juntos.
Nesse caso, o banco improvisado mostrou-se providencial. Não foi difícil que ali nos acomodássemos lado a lado. Assim, poderíamos ler a mesma história, ao mesmo tempo. Antes de terminada a primeira página, Leonor propôs que, chegado o momento em que apareceria o casal de enamorados em torno do qual girava a história, ela faria a leitura das falas da mulher, e eu faria a do homem.
Essa leitura foi mais um acontecimento nas nossas vidas. As fotos das personagens, suas falas, a narrativa, nos envolviam num mundo mágico, indescritível.
A história se passava num tempo um tanto antigo; não muito, porém. Hoje, pelo que me recordo, talvez se situasse dos meados para o final do século dezenove. Era a história de um arrebatador caso de amor que surgira entre um homem de meia idade, e uma mulher um tanto mais nova que ele.
Este havia tido uma angustiante paixão na juventude, que lhe furtara parte dos seus melhores anos, e muitos dos seus sonhos. Depois, um pouco refeito, encontrara aquela que julgava ser o seu amor verdadeiro, e com a qual atravessaria todos os anos da sua vida. Poucos anos puderam viver juntos colhendo dias e dias de intensa felicidade. De início, a mulher sentira ter dificuldades para engravidar, e o que mais queriam para que sua felicidade se completasse, era dividi-la com alguns filhos. No início do terceiro ano após terem se casado, ela, por fim, engravidou. Não foi uma aventura tranqüila. Havia momentos de altos e baixos, e com sérios riscos de abortar. Resistiu, porém, até o parto. Terrível engodo do destino. Um dia depois de ter nascido, a criança, uma menina, estava morta. A mulher não suportou essa tragédia; definhou; e apesar do desvelo do apaixonado marido, dos amigos e familiares, três meses depois estava morta. O homem se entregou a uma vida boêmia, mais desesperado que desesperançado. O tempo, atroz, corria incessante, inexorável, e também parecia consumi-lo. Nada o consolava das perdas, das ilusões que tivera com o amor.
O custo dos desregramentos da vida boêmia, não tardou a aparecer. Logo, era ele que se entregava à arrebatadora sanha da tuberculose. Porém, algo parecia impedir que ele fizesse o seu caminho na direção da morte, como dizia a uns amigos, e a outros companheiros de infortúnios, homens e mulheres. Padecia atrozmente, mas a vida teimava em não entregá-lo à morte. E o tempo fluía, como que devorando tudo à sua volta.
Certo dia, depois de vencido pela insistência dos bons amigos que tinha, compareceu a um sarau. Havia estado por meses numa estância cujo clima era propício aos tuberculosos, onde recebera alguns cuidados que lhe proporcionaram alguma melhora. De lá retornara há poucos dias, e estivera mantido em recolhimento, longe do burburinho social da cidade. Chegado ao sarau, ao ver casais apaixonados, a felicidade rondando à sua volta, quis desaparecer. Procurou um local isolado, distanciado de mais esse insulto da vida.
Esta, ao que parece, implacável em torturá-lo, o enredou uma vez mais. Depois de um breve intervalo entre as belas músicas, uma canção começou a ser dedilhada ao piano. Eram notas envolventes, densas, que produziram nele um inexplicável arrebatamento. Não foi por si mesmo. Cada compasso da música atraia-o para dentro do salão. Parou na porta, e tudo e todos pareciam flutuar num enlevo indescritível.



8 comentários:

Saramar disse...

Olá, Poeta, boa tarde.
É realmente uma agradável surpresa e um prazer conhece ro seu blog, rico de tantas belezas e tanto talento.
Voltarei para ler toda essa história do tempo, ver e rever, seu spoemas.
Parabéns. Tudo aqui é de primeira qualidade e de muita sensibilidade.

Beijos

tormenta del mar disse...

Gracias por tu comentario y tu visita! Eres bienvenido a mi blog!

Besos del sur de Buenos Aires!

Tormenta.

vida de vidro disse...

Obrigada pela tua visita que me permitiu conhecer um blog de muita qualidade. És sempre bem vindo. **

efvilha disse...

Obrigado Saramar.
O prazer é recíproco.
Serás, sempre, bem-vinda.
Teu blog já é cativo no meu espaço dos favoritos.
Um cordial abraço. A ti, e aos teus amigos.

efvilha disse...

Olá Tormenta del Mar. Aqui vai o meu abraço na direção do sul de Buenos Aires.
Volte sempre. Aqui também és bem-vinda.
Serei assíduo visitante ao teu blog.

efvilha disse...

Obrigado, Vida de Vidro.
Foram essas mesmas marcas que me atrairam ao teu blog. Estás no marcador dos preferidos.
Voltarei mais vezes aos teus cristais feitos por palavras.

Zana disse...

É sempre com um prazer alucinante que devoro estes pedacinhos de Chronos...

Continuarei a segui-lo fielmente :)

Obrigada pelas tuas palavras :)

Abrço de luz

efvilha disse...

Zana!
Obrigado pelo carinho dos teus comentários.
Sabes que também percorro o teu caminho feito por palavras.
São deliciosas palavras que, agora sei, são elevadas pelo canto da tua voz.
Abraço.